Até há bem pouco tempo, nas tradicionais pausas para seleções, era mais provável encontrarmos Jack Grealish amarrado ao balcão de um pub, afogado em cerveja, que num relvado ‘internacional’ a contorcer os oponentes com deliciosos ‘shots’ de técnica, irreverência e visão de jogo.

Acredito que o médio inglês consiga brilhar nos dois lugares: a ser o líder bon vivant que paga rodadas à malta, e, por outro lado, mais recentemente, a comandar uma seleção dos três leões que embora não tenha conquistado qualquer ponto na deslocação à Bélgica, ganhou um jogador que há muito reclamava mais oportunidades.

Jack Grealish poderá ver as meias-finais da Liga das Nações no conforto do seu bar preferido, a imaginar como teria sido se Inglaterra tivesse concretizado metade das oportunidades que o próprio começou a criar. Aquela receção com salpicos de Bergkamp deixou Meunier pendurado como que numa comum ressaca, mas o passe que se seguiu, então para Harry Kane, mostrou que o jovem nascido e criado em Birmingham não foi a jogo só para dar ‘show’.

Mas deu.

A primeira titularidade de Grealish por Inglaterra, em jogos oficiais, marcou o antes e o depois da seleção de Southgate: o antes do médio do Aston Villa, quando era olhado com desconfiança pelos adeptos; e o depois de Jack Grealish, quando uma exibição – na seleção – é capaz de fixar um jogador na equipa inicial e, mais, organizá-la quase à sua vontade.

“Há sempre dúvidas quando um jogador chega ao nível internacional, nem tanto sobre se ele conseguirá mostrar a forma recente que tem pelo clube, mas sim se consegue levar aquela confiança, aquela arrogância futebolística. Ao vê-lo na segunda parte, foi como se estivesse a jogar pelo Aston Villa. Passou tudo por Jack Grealish”.

As palavras são de Jamie Carragher, nos comentários na Sky Sports, e dão eco à exibição do médio criativo, responsável pela esmagadora maioria de jogadas perigosas da seleção inglesa: passes de calcanhar e em profundidade, ou ‘simplesmente’ bolas de rutura que não raras vezes surpreenderam a defensiva belga. 

“É fantástico estar em campo com ele. É um jogador que está sempre à procura de meter um passe para a frente, algo muito bom para os avançados. Deu sinais muito positivos”, elogiou Harry Kane. 

À semelhança do avançado do Tottenham, capitão inglês no duelo da Liga das Nações, também Gareth Southgate se rendeu à exibição de Grealish. Outrora relutante em dar oportunidades ao skipper dos Villains, o técnico assumiu não conseguir traduzir em palavras, na conferência de imprensa, a “fantástica” exibição do médio. 

“O Jack fez um jogo absolutamente fantástico. Aquilo que eu vi - e que sabia que podia ver - foi alguém com coragem para jogar. Assumiu a bola em espaços curtos, esteve bem tecnicamente e ainda tirou vários jogadores da frente. Tem razões para estar deliciado com a forma como jogou”, afirmou.

Mas, ‘sem papas na língua’ e sem o politicamente correto, Southgate: Grealish atingiu outro patamar nas escolhas da seleção? 

“Sem dúvida, a 100 por cento. Fez um ótimo jogo, onde vimos toda a sua qualidade. Não consigo elogiar mais a sua exibição”, vincou. 

Apesar de ter saído derrotado, o próprio Jack Grealish não cabia em si de feliz pela estreia a titular em jogos oficiais, rubricada com uma prestação de fazer inveja a muitos outros jogadores e que, finalmente, chamou a atenção dos mais desatentos. 

“Adorei, absolutamente. Isto era tudo o que eu esperava, são estes jogos que eu sonhava em participar. É isto que eu gosto, a pressão de ter que fazer um grande jogo”, assumiu. 

É isso que tu gostas e é para isso que a maioria das pessoas liga a televisão para ver os jogos do Aston Villa. Hoje e de há uns bons anos a esta parte. 

Hoje com 25 anos, Jack Grealish é um dos últimos one-men-club do futebol moderno. Do berço de Birmingham para as escolas de formação do Aston Villa foi uma viagem tão curta e apaixonada que só a braçadeira de capitão no braço inglês, cerca de cinco anos após a estreia, consegue explicar. A imagem era a mesma de 2015, quando, pela primeira vez, subiu ao relvado do Villa Park com a camisola da equipa principal: usava o 40, numa premonição para o que viria a acontecer, mas as meias já habitavam mais abaixo que o normal, quase sem tapar a caneleira, enquanto a brilhantina – qual palha de aço – já pedia aos adeptos que olhassem para ele de uma forma diferente dos demais. Se dúvidas houvessem, em meia dúzia de intervenções sofreu meia dúzia de faltas, punidas com meia meia dúzia de cartões amarelos.

‘Este sou eu’, apresentou-se um adolescente Jack Grealish. Dentro do relvado, porque fora as apresentações não foram de um teenager com tudo para se tornar um caso sério no futebol. Pelo contrário. Extra-futebol, Jack Grealish apresentou-se como um típico adolescente que sonha um dia ser um bon vivant num qualquer bar de Birmingham. Ou de Tenerife. 

Embriagado pelo sucesso desportivo – e financeiro – alcançado precocemente, o inglês desde cedo personificou o estigma do inglês que bebe ‘até chegar com um dedo’, como diz a minha mãe. Ainda adolescente, de férias com os amigos em Tenerife, foi fotografado deitado no meio da rua, como que a pedir mais um fino para se recompor antes de um treino de um clube que milita nas divisões distritais; outrora já tinha sido apanhado a inalar balões de óxido nitroso e já havia também pedido desculpas por ser o anfitrião de uma festa que durou até às tantas no hotel onde o clube estava hospedado. 

Quando parecia ter amadurecido – como aparenta neste momento – eis que Jack ‘Bukowski’ Grealish volta a fazer das suas: em março passado, numa altura em que a pandemia da covid-19 fazia manchetes, com confinamentos um pouco por todo o mundo, o agora internacional inglês foi obrigado a recorrer às redes sociais para pedir desculpa; tinha furado as normas de segurança impostas pelo Reino Unido para, imagine-se, ir beber uns valentes copos a casa de um amigo.

Até aqui, nada de (muito) alarmante. Mas o pior veio depois, quando Grealish tentou ir embora.

À saída de casa de um dos comparsas, o capitão do Aston Villa foi filmado completamente embriagado, com uma roupa que – convenhamos – não parecia totalmente sua, e já com três recordações no Range Rover. Sim, porque estacionar sóbrio não é problema, mas conduzir para lá de bêbado já requer mais preparação que correr durante 90 minutos num relvado. Prática também, mas, como vimos, não é de prática que Grealish sente falta.

Em meados de julho, após assegurar a permanência do Aston Villa na Premier League, a primeira coisa que Dean Smith, o treinador, disse à imprensa sobre o médio foi que, renovações de contrato à parte, os dois “iam apanhar uma bebedeira juntos”.

Aliás, se assim fosse, o criativo fez questão de dissipar as interrogações. Em meados de julho, após assegurar a permanência do Aston Villa na Premier League, a primeira coisa que Dean Smith, o treinador, disse à imprensa sobre o médio foi que, renovações de contrato à parte, os dois “iam apanhar uma bebedeira juntos”. Aconteceu, como o clube registou nas redes sociais, e poderá até ter sido daquelas que nos levam a fazer promessas que não sabemos se vamos cumprir no dia seguinte, mas que acabamos por o fazer só para honrarmos as nossas palavras. Todos temos o nosso quê de Jack Grealish, podemos admitir. 

A verdade é que poucas semanas após a permanência e a noitada entre jogador e treinador, o capitão renovou contrato com o único clube que conhece. Era cobiçado por meia Inglaterra – breve será pela Europa toda – mas a manutenção no principal escalão do futebol inglês, bem como a perspetiva de um projeto mais ambicioso a nível desportivo, levaram Jack Grealish a prolongar o vínculo entre a camisola e o coração. Isso e as 140 mil libras semanais que recebe na conta. 

Talvez desejoso de mais uma série de noites de farra, a renovação de Grealish e algumas contratações cirúrgicas elevaram o futebol do Aston Villa. Depois de assegurar a permanência na derradeira jornada da época passada, os Villains apareceram a todo o gás nesta temporada. Jack Grealish tem a sua (grande) quota parte nas goleadas impostas ao Liverpool (7-2), Leeds (3-0) e Arsenal (3-0), mas as chegadas de Emiliano Martínez (Arsenal), Matty Cash (Nottingham Forest), Bertrand Traoré (Lyon), Ross Barkley (Chelsea) e Ollie Watkins (Brentford) permitiram a Dean Smith apresentar um futebol diferente, mais vistoso ofensivamente e mais seguro no plano defensivo. 

À oitava jornada da Premier League, o Aston Villa é sexto classificado, com 15 pontos, menos três pontos e menos um jogo que o líder Leicester. Leva apenas nove golos sofridos e 18 marcados (sete ao Liverpool), com Grealish a ter participação direta em 50 por cento desse total de tentos – quatro golos e cinco assistências. 

‘Que jogador é Jack Grealish’, disse apenas Jurgen Klopp após a goleada. Assim: curto, grosso e bem firme, como o próprio cabelo do número 10 dos Villains. 

A paragem para os compromissos das seleções não permitiu ver como o Aston Villa ia dar seguimento à vitória imposta ao Arsenal, por 3-0, no Emirates, mas deixaram a certeza de que Jack Grealish já não é só um amor para os habitantes de uma zona de Birmingham. 

Depois de alguns minutos em jogos de preparação, o capitão do Villa estreou-se a titular em jogos oficiais pela seleção de Inglaterra. Poderá até ter usado as suas míticas chuteiras da sorte, tal foi exibição que assinou, ou então a inspiração com quem partilhava o relvado permitiu-lhe brilhar ainda mais. Porque, bebedeiras à parte, o camisola 16 dos três leões, que admitiu no final ter adorado o encontro, assumiu também que, para se motivar, passou as últimas 24 horas embriagado por vídeos do youtube, onde Kevin de Bruyne e Philippe Coutinho assistem companheiros como um empregado de um bar serve finos aos clientes. 

Nas últimas 24 horas tenho visto vídeos dos meus jogadores favoritos, como faço todos os jogos. É algo que me mantém positivo e confiante. Obviamente que estava um bocadinho nervoso, mas também muito entusiasmado com a possibilidade de jogar de início. Vejo vídeos do Kevin de Bruyne, do Coutinho – muitos jogadores das minhas posições. Fazia isso quando era criança e ainda hoje o faço. É o que faz continuar, não tenho vergonha de admitir. 

Nem tens que ter, Jack Grealish. Da mesma forma que muitos adeptos não deveriam ter vergonha de admitir que o médio inglês é um dos jogadores mais entusiasmantes do futebol moderno, quer pelo que faz no relvado, quer por tudo o que mostra fora dele. É sabido que este desporto é mestre em tornar bestiais em bestas – e vice-versa – em pouco tempo, mas de uma coisa já ninguém nos livra: que os mais novos vão olhar para os vídeos de Jack Grealish da mesma forma que ele olha para o de outros jogadores; e que um futebolista bon vivant, quase trazido de outra década, consegue ser tão (des)elegante embriagado ao balcão de um pub como a representar o seu país com a bola nos pés.

Um brinde a isso! 


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