À parte dos números, a passagem de Bruno Fernandes pelo Sporting ficou marcada pelo caráter do internacional português. Envolvido num clube com problemas estruturais – a invasão a Alcochete foi provavelmente a página mais negra da história dos leões – o médio desde cedo se assumiu como figura de proa, quer pela entrega, competitividade e ambição que colocava no relvado, quer pela postura e rebeldia que não raras vezes deixava orgulhosos os adeptos verde e brancos. De resto, é também essa ambição que o coloca agora em Inglaterra, num dos maiores clubes do mundo – embora a fase menos positiva que atravessa – e no campeonato que sempre desejou. 

Bruno Fernandes nasceu para o futebol nas ruas da Maia, a competir – e humilhar – os amigos do irmão mais velho Ricardo. Assinou pelo Infesta com apenas sete anos, antes de despertar a cobiça do Boavista e FC Porto. A dimensão dos ‘dragões’ fazia antever uma escolha fácil, mas a oferta de um passe de autocarro para o jovem viajar entre a casa dos pais e o centro de treinos permitiu aos ‘axadrezados’ ganhar o concurso. 

“Aquele pequeno rapaz conseguia fintar o mundo inteiro. Era cheio de garra, um verdadeiro líder no campo. A única coisa que precisava de melhorar era o remate, era o que o separava do estrelato”, contou o ex-vice presidente Remulo Marques ao ‘MaisFutebol’, em 2017, aqui citado pelo ‘The Athletic’.

Ao fim de oito anos no Bessa, após cedências ao Pasteleira e passeios entre o meio-campo e o centro da defesa, Bruno Fernandes rumou ao Novara. Tinha apenas 17 anos, mas o seu caráter valeu a mudança para Itália, pelas mãos de Cristiano Giaretta, que pagou 40 mil euros, então em 2012. 

“Fiquei impressionado pela sua qualidade técnica. Era realmente muito bom em situações de um para um e tinha uma tomada de decisão excelente. A única coisa que não me convenceu foi a compleição física. Ainda hoje não é um armário, claro, mas naquela altura era muito, muito franzino. Mas mostrou mais caráter que os restantes jogadores daquela idade, tinha personalidade na bola, estava sempre a pedi-la. O jogo passava todo por ele”.

As primeiras semanas em Itália não foram fáceis, conta Giaretta, mas depois de receber a companhia da namorada – hoje esposa – Bruno Fernandes continuou a subir uma escada que teve na língua um degrau ultrapassado com a mesma criatividade que colocava em campo: ‘post-its’ em todos os objetos espalhados pela casa. 

“Estavam em todo o lado! ‘Tavolo’ em cima da mesa, ‘sevia’ na cadeira, ‘frigo’ no frigorífico. Foi inteligente. Ao fim de um mês já conseguia falar italiano. A atitude dele foi soberba, mostrou um caráter enorme para um jovem com apenas 17 anos”, acrescentou. “Sou agente/diretor desportivo há 15 anos e nunca conheci um jogador tão inteligente, não encontrei outro como ele”. 

Se a atitude extra-futebol de Bruno Fernandes era surpreendente, o agora internacional português cedo se destacou dentro das quatro linhas. Apesar de ter sido contratado com a ideia inicial de competir pela equipa primavera (sub-19) do Novara, a superioridade que revelou perante os companheiros valeu-lhe a estreia precoce na equipa principal, frente ao Empoli, então líder da Serie B. 

Fez um jogo “fantástico”, conquistou os adeptos e fez soar os alarmes de outros emblemas. Escreve Jack Lang, do ‘The Athletic’, que Inter e Juventus tentaram agarrá-lo, mas que a proposta da Udinese, que prometeu um papel regular na equipa principal, foi mais convincente.

“Era ainda muito jovem, mas eu sabia que ele percebia tudo o que lhe dizia, o que é muito importante para um treinador”, conta Francesco Guidolin, à época técnico da ‘Udine’. “Quando falo sobre o Bruno Fernandes, o que vem à cabeça é a sua inteligência. Acima de tudo isso, quer como jogador quer como pessoa”. “É tão astuto que percebe qual a melhor posição a tomar durante o jogo, dependendo do que está a acontecer. É capaz de aparecer onde for necessário para ajudar a equipa”, acrescenta Giaretta. 

A experiência no Estádio Friuli catapultou Bruno Fernandes para um patamar superior: a qualidade sempre esteve lá – às vezes até de forma irritante, como descreve Di Natale – mas Bruno desenvolveu-se sobremaneira nos capítulos da versatilidade, interpretação do jogo e, principalmente, na liderança. Tornou-se num jogador ‘arrogante’, no bom sentido do termo. 

De resto, foi essa ‘arrogância’ que marcou a sua chegada à Sampdoria, após três épocas de bom nível em Udine. Assim que chegou ao Luigi Ferraris, Bruno Fernandes pediu, assertivamente, a camisola 10 – a mesma camisola 10 usada por Roberto Mancini, um dos grandes nomes da história dos ‘blucerchiati’. A aventura em Génova durou apenas um ano, mas foi o suficiente para o internacional português chamar a si os holofotes e colocar-se no primeiro plano, embora vagueasse por todo o meio-campo da equipa. 

Não surpreendeu, por isso, que o Sporting fizesse chegar uma proposta superior aos nove milhões de euros. A surpresa, aliás, é que a mesma tenha aparecido há apenas dois anos e meio. 

Tentar descrever estas duas épocas e meia em Alvalade é somente ‘chover no molhado’. Qualquer adepto do futebol português – e até europeu – se rendeu às qualidades de Bruno Fernandes. Além dos golos, assistências e passes ‘teleguiados’ que colocavam os companheiros na cara do guarda-redes adversário, o ex-jogador do Sporting conquistou as bancadas com a sua entrega, paixão, compromisso e profissionalismo. Mostrou sempre ser a extensão do treinador dentro das quatro linhas, quer a cumprir o papel para si destinado, quer a motivar e corrigir os restantes companheiros. 

“Se fossem o Bruno Fernandes, vocês iriam rir e confessar que o segredo é uma grande taça de Chocapic que comem todos os dias ao pequeno almoço. A família, de resto, tem uma explicação melhor: ele tem um grande compromisso com o descanso e com a recuperação, exemplificada pela ‘sagrada’ sesta de 90 minutos que tira todos os dias depois de almoço”, explica Jack Lang, do ‘The Athletic’. 

Pequenos-almoços e sestas à parte, o médio escreveu o seu nome na história do futebol europeu, em 2018/19, ao tornar-se no médio mais goleador de que há memória, com 33 golos numa só temporada. Bateu penáltis, livres diretos, fez golos a 30 metros da baliza e alguns de fazer inveja a muitos proclamados avançados. 

No entanto, não foi só a sua qualidade técnica a permitir-lhe tal feito. 

“Há outros fatores mais vagos: confiança, momento e pertença. Bruno Fernandes sentiu-se valorizado assim que aterrou em Lisboa. A transferência, pedida por Jorge Jesus, mostrou imediatamente que ele era visto como uma peça-chave na equipa”, acrescenta o jornalista. “No Sporting, ele tornou-se a figura principal. Era o íman em todos os ataques, o jogador pelo qual todos procuravam. Ele é aquele jogador que está disposto a assumir os riscos no último-terço: tem um remate explosivo e procura usá-lo sempre que conseguir”, coaduna Diogo Pombo, do ‘Expresso’. 

É esse ‘risk-taker’ que poderá fazer a diferença em Inglaterra. O Manchester United procura não só um jogador de qualidade reconhecida, mas também um líder que assuma a responsabilidade, que se mostre ao jogo e não tenha medo de decidir, que, como no jazz, “respeite a estrutura, mas não se inibia de alterá-la”. 

É neste espectro, e envolvido em grande expectativa, que Bruno Fernandes chega ao Teatro dos Sonhos. A pressão é enorme – o negócio pode chegar aos 80 milhões de euros – mas Giaretta, o ‘primeiro’ homem acreditar no português, mantém a ambição de 2012, quando o levou para o modesto Novara. 

“Bruno tem todas as qualidades – mental, individual e técnica – para alcançar o topo. Se não tens grandes expectativas para um jogador assim, por quem terás tu grandes expectativas?”.

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