A pausa para os compromissos internacionais e o lançamento do mais recente simulador de treinadores de futebol trouxe de novo Sergio Canales para as lides da imprensa desportiva nacional e internacional. Há uma década, o médio criativo era uma das maiores promessas desse mesmo simulador; esta semana, embora tenha sido recordado desse facto por alguns jornais nacionais, Canales escreveu o seu nome na lista de marcadores de Espanha, precisamente no dia de estreia do novo jogo da Sports Interactive. Aconteceu no particular frente à Holanda, marcado por mais um espetáculo vazio de público mas cheio de estrelas no relvado. Pormenores e coincidências à parte, Sergio Canales trocou o equipamento pelo fato de gala e deixou que, ao invés da bola, fosse a voz a conduzir uma viagem por uma carreira marcada por altos e baixos, por três lesões de longa duração e, mais recentemente, por exibições que enchem de esperança os adeptos do Bétis.
Sergio Canales é um ‘daqueles’ nomes eternos para os amantes de futebol. A passagem por Madrid deu-lhe o rótulo de jovem promessa, mas foram as aventuras por Real Sociedad e Bétis, maioritariamente, que fizeram – e vão fazendo – justiça aos predicados que o criativo desde cedo mostrou: técnica, toque de bola, posse e inteligência.
“Desde que tenho consciência de estar no futebol que sempre me ensinaram a ter a bola, a gostar dela e a criar ocasiões através da posse, sempre. Não falo do Racing Santander, falo dos tempos de escola. A minha equipa era sempre a que marcava mais golos, a que tinha mais posse de bola. Sempre entendi o futebol desta forma. Portanto, se eu tocar 80 vezes na bola durante um jogo, será mais fácil para mim sentir-me confortável e à vontade para contribuir para a equipa do que se tocar em apenas dez bolas. No final do dia, há jogadores que defendem melhor as costas, outros que gostam mais de choque… cada um é feito de diferente maneira. Se a tua equipa pensa da maneira que tu mais gostas, é o ideal”, explica.
Em tempos em que o futebol é descortinado ao detalhe, quer com estatísticas quer com análises, Canales recebeu a equipa da revista Panenka num Benito Villamarín em silêncio. Deixou a camisola ‘10’ e a pele de líder no balneário, mas a personalidade do internacional espanhol subiu até ao relvado para, alto e bom som, continuar a executar como se estivesse perante milhares de pessoas: a ler, a entender, e a pensar o jogo fora do jogo.
“Acho um pouco estranho essa atenção pelas estatísticas no futebol, mas é certo que cada vez mais medem tudo num jogador: número de passes, quilómetros percorridos, taxa de acerto, velocidade, etc. Somos analisados ao milímetro"
“Acho um pouco estranho essa atenção pelas estatísticas no futebol, mas é certo que cada vez mais medem tudo num jogador: número de passes, quilómetros percorridos, taxa de acerto, velocidade, etc. Somos analisados ao milímetro. Embora ache isso estranho, não deixam de ser dados objetivos que podem trazer rendimentos de alguma forma. Sendo um desporto de onze contra onze, não sei até que ponto esses dados se podem comparar com outras disciplinas. (…) Este desporto não é um desporto individualista. No basquetebol podemos facilmente ver se um jogador foi a estrela, mas no futebol um jogador que marca um golo pode ter perdido 15 bolas. E, cuidado, esse golo pode até ter decidido a partida. É muito distinto, não acredito que o futebol possa ser entendido somente através da estatística”, analisa.
Embora a ideia do médio seja perfeitamente legítima e as estatísticas não sejam o ponto alto das análises futebolísticas, é certo que ajudam a explicar diferentes fenómenos e momentos. A atravessar uma das melhores fases da carreira – quiçá a melhor – Canales logrou no Bétis os melhores dados estatístico desde que se estreou pela equipa principal do Santander, há mais de uma década. Em 2018/2019, na primeira época de Quique Setién no Benito Villamarín, o criativo espanhol apontou nove golos em todas as competições, o seu melhor registo nesse aspeto. Mérito do próprio, do treinador, e de uma ideia de jogo que assenta que nem luva na personalidade do jogador.
Pelo estilo do plantel e do tipo de jogadores que tínhamos, acreditávamos que a melhor maneira para ganhar era assim: tendo a bola, ganhando a posse, sendo protagonistas e empurrando o adversário para o seu próprio campo. Esta filosofia encantava-nos. Mas o ‘como’ é sempre relativo. Por exemplo, o Getafe conseguiu o apuramento para as competições europeias porque o estilo do plantel se adaptou perfeitamente à forma como Bordalás vê o jogo. Isso não é melhor nem pior. Há que saber que plantel tens, de que peças dispões e que estilo vai representar melhor essas características. Esse é o caminho. Nós estávamos – e estamos – identificados com esse estilo.
“Setién esteve duas temporadas connosco: na primeira entrámos na Europa quando esse era um objetivo a longo prazo; na segunda, podemos dizer que não tivemos no nível esperado durante três meses, mas no resto da época conseguimos competir e deixámos sensações muito boas. Aliás, falava com jogadores de equipas adversárias que diziam que jogar contra nós era um suplício. Para nós, pela nossa forma de trabalhar, isso era incrível, todo esse reconhecimento. (…) Agora tenho amigos que se tornaram adeptos do Bétis pela nossa forma de jogar, porque desfrutavam dos nossos jogos. Isso, de alguma forma, indica que tivemos muito mérito. Fizemos grandes partidas”, continua.
Inserido perfeitamente na cultura e filosofia do clube, Canales é hoje um dos principais responsáveis pela construção de jogo dos Béticos. Essa tarefa não foi somente adquirida através de várias sessões de treino – com e sem Setíen – mas também por toda uma polivalência que o médio foi alcançando ao longo da carreira, desde o Santander até ao Bétis, com Valência, Real Madrid e Real Sociedad pelo meio.
“Essa mudança acontece porque sou um pouco ou bastante teimoso. (…) Sou médio-ofensivo [número ‘10’], é uma posição onde normalmente te consideram um jogador frio, que aparece e desaparece de um jogo para o outro. Eu queria livrar-me desse rótulo de ser um jogador intermitente para ser um jogador constante, regular, sempre em contacto com a bola e a ajudar os meus companheiros. Foi aquilo que me propus a fazer. (…) Percebi que tinha de aprender outras coisas: ter mais chegada à área, desmarcar-me… Bem, também me procurei inspirar nos meus colegas. Um deles é o Juanmi. Às vezes ficava a olhar para o tipo de desmarcação que fazia quando jogava numa ala. No final, também não se trata de ser um jogador de apenas uma posição: poder jogar na ala, no meio ou mais recuado para pegar no jogo”, elucida.
Este é, sem dúvida, um discurso de um Canales mais maduro e responsável daquele que trocou o berço de Santander pela ilusão de Madrid. Foi uma mudança drástica mas essencial para o crescimento futebolístico e humano de um médio que não raras vezes recorria a ‘antigos lances de glória’ para combater os maus ou os momentos de menos confiança.
“Ir para Madrid foi muito complicado, não vou negar. Passei de viver com os meus pais, ir à escola com os meus amigos e estar todas as tardes com eles a viver sozinho na capital. Houve um boom muito grande, notei-o, claro. Custou a adaptar-me, mas, quando o fiz, tudo começou a correr bem. (…) Foi lá que comecei a ter menos minutos e é quando acontece a primeira mudança de chip: se queres estar aqui, tens que lutar, cuidar-te mais e trabalhar mais”, admite.
"Em momentos de baixa confiança, sobretudo quando não jogava bem nem encontrava o meu nível, punha vídeos dos meus tempos no Racing para me motivar e recordar como devia fazer as coisas"
Em momentos de baixa confiança, sobretudo quando não jogava bem nem encontrava o meu nível, punha vídeos dos meus tempos no Racing para me motivar e recordar como devia fazer as coisas. De há uns anos a esta parte, comecei a trabalhar com um coach e agora, por uma série de coisas, é algo que não me faz falta, que já não preciso. Não é que me faça bem ou mal, simplesmente agora tento que não haja momentos de quebra de confiança. Para mim, o mais importante no futebol é encontrar a continuidade, tentar estar bem, forte e positivo, para que um erro não te deite abaixo. É o que eu digo sempre: uma bola perdida no início mata-te para o resto do jogo. É preciso evitar essas coisas. Acho que trabalhar a cabeça e a tua mentalidade no desporto é muito, muito importante.
De resto, não é aleatório que as palavras de Canales transportem imediatamente para um episódio da sua própria carreira quando, ao serviço do Santander, saiu ovacionado do Sánchez-Pizjuán após uma exibição que começou com… um sem fim número de erros.
“É curioso porque cheguei a esse jogo num momento muito bom, estava muito bem. E esse início podia ter sido fatal. Foi horroroso. Perdi todas as bolas, tentei três remates à baliza que saíram perto da bandeirola de canto. Incrível, a sério. Recordo-me de estar dentro de campo, perto dos 15 minutos, e pensar: ‘Mãe do céu, que se passa comigo?’. De repente, na primeira vez que apareço na cara do guarda-redes… Lembro-me de ter visto no Youtube um golo de um jogador da Udinese, o Di Natale, que aparecia sozinho e ‘picava’ a bola por cima do guarda-redes. Como tive tanto tempo para pensar, esse vídeo veio-me à cabeça e fiz o mesmo ao Palop. Posso dizer que esse jogo mudou a minha vida”
Para o bem e para o mal Canales.
Após o sucesso no Racing Santander, o criativo mudou-se para Madrid, onde jogou apenas por uma época, antes da transferência para o Valência. O Mestalla foi a casa do jogador durante três temporadas – uma por empréstimo do Real Madrid – e um dos lugares mais importantes no seu desenvolvimento.
“Sem dúvida. Tento sempre ficar com os aspetos positivos dos acontecimentos. Estive um ano em Madrid, sim. É fácil pensar que, bem, não joguei quase nada… Mas posso parar para pensar bem nisso: tinha 18 anos, aprendi com os melhores jogadores do mundo, treinei com futebolistas de muita qualidade… Foi uma barbaridade, é algo que te faz crescer. A mim, tornou-me mais inteligente dentro de campo. Guardo bons momentos das duas experiências”, explica Canales, antes de esclarecer a questão se teria dado “um passo atrás”.
“Tampouco pensei no que deixava para trás. Mais, a única vez que disse a mim mesmo que tinha de sair foi quando deixei o Valência no mercado de inverno, porque aí sim, realmente senti necessidade de sair devido às duas lesões nos cruzados. Estava a custar-me muitíssimo a segunda recuperação, voltar a encontrar o meu nível. Aí sim, precisava de mudar de ares. Sentia-me encolhido e precisava de me soltar novamente. Foi bom para mim”, lembra.
Foi bom para o médio e bom para os adeptos de futebol. Depois da passagem pelos ‘che’, Canales encontrou na Real Sociedad – e mais tarde no Bétis -um lar que lhe permitia exprimir todo o seu futebol; aquele futebol que ele apreciava desde novo: de técnica, de posse e de controlo de jogo.
“Tive várias ofertas, mas a Real Sociedad tinha entrado na Liga dos Campeões e contava com jogadores muito bons. A verdade é que cresci muitíssimo. Encontrei um balneário que me fez crescer também como pessoa e, quando deixar de jogar, são essas recordações que vou levar. A Real tinha as coisas muito claras, uma filosofia muito familiar. Estive lá com muito prazer e no último ano e meio sentia-me genial. Entrámos na Europa e fizemos anos muito bons”, recorda.
De resto, essa foi também a última experiência de Canales na maior prova de clubes a nível europeu. A transferência para o Bétis mostrou o melhor do novo Sergio: um jogador mais maduro, mais consciente e mais inteligente dentro do relvado. A Champions, essa, continua a ser um sonho, mas é nas provas internas que os clubes conseguem mostrar a sua qualidade de forma regular.
É a competição que todos os jogadores querem jogar. Lutámos e trabalhámos todos os dias para poder estar lá: pela forma como está organizada, pela ilusão que dá aos adeptos e pelo altíssimo nível individual, é o melhor e mais importante torneio de clubes. (…) Eu percebo, principalmente com as transferências. ‘Há que contratar este jogador para conquistar a Liga dos Campeões’. A Liga é deixada muitas vezes para segundo plano, quando na realidade é o campeonato que define o teu ano num nível mais global. A Liga é o termómetro da regularidade. A ‘Champions’ é completamente ao contrário, onde num nível tão alto, se não estás concentrado ou tens um jogo menos bom podes ser eliminado.
Foi precisamente essa regularidade que não permitiu um ‘brilharete’ por parte do Bétis de Setién. A equipa do ex-técnico do Barcelona encantou os adeptos do futebol mundial por um estilo de jogo quase ‘made in Catalunha’, mas depois de uma época bem conseguida, os resultados acabaram por ditar o seu afastamento. Esta temporada, os verdiblancos são orientados desde o banco pelo experiente Manuel Pellegrini, mas é Canales quem lidera as operações dentro do relvado.
“Sou uma pessoa que gosta de se dar bem com todos dentro do balneário, que tenta sempre que haja bom ambiente, que não hajam grupos. Nesse sentido, também gosto de assumir um poupo o papel de engraçado. Lá fora, no relvado, não vou mentir: aqui sinto uma grande responsabilidade, sinto que a equipa precisa de mim e que eu preciso da equipa. É nos momentos mais difíceis que eu devo aparecer”, resume.
Sergio Canales será sempre um daqueles eternos jogadores para os amantes de futebol. Pode ser com a camisola da Real Sociedad, do Bétis ou da seleção de Espanha, mas Canales será sempre sinónimo de inteligência, de técnica e de uma característica que diferencia jogadores: a habilidade de ler, de entender e de pensar o jogo dentro e fora do jogo.
Related
samara cyn. how much are you willing to give to be a part of it all?
para conduzir até casa. esta podia ser uma das definições da música de samara…
‘The world is finally paying attention’, Jack Grealish.
Até há bem pouco tempo, nas tradicionais pausas para seleções, era mais…
Remember the name, Wayne Rooney.
Wayne Rooney pôs esta sexta-feira um ponto final na carreira de jogador, aos 35…